No primeiro encontro, depois de ver algumas imagens dos trabalhos do artista Marcos Amaro, intrigado, lhe fiz uma pergunta diante do que via. Só poderia ficar curioso diante do que me mostrava em imagens. O artista trabalha com restos de aviões sucateados, transformando-os em esculturas monumentais. Os trabalhos, embora fossem uma visão um pouco catastrófica, sugeriam paixão pela aviação. Paixão acumuladora, como muitos artistas o fazem, que coleciona, guarda, museifica e transforma as coisas inventadas pelo homem, que depois de usadas são descartadas, destruídas, jogadas no lixo ou abandonadas para virarem sucata.
No seu caso, vai encontrar a matéria dos seus trabalhos nos cemitérios de aviões, facilmente visíveis em aeroportos periféricos pelo mundo. Geralmente, sinais de falência das companhias aéreas e também sinais de obsolescência das aeronaves, que se não vão para museus aeronáuticos acabam por se desfazer nesses cemitérios, como o maior que se tem conhecimento, o do deserto de Mojave, no estado do Arizona, nos Estados Unidos da América. A vista desse lugar é impressionantemente desoladora.
A resposta de Marcos Amaro é positiva. Tem no histórico da família o pai aviador. A paixão evidente pelo que faz vem daí. Mas, estranhamente, essa paixão não se manifesta por aviões novos, como era de se esperar, dos modelos que voam sem tripulação, por aviões de guerra invisíveis a radares, de alta tecnologia mais velozes que o som, não. O seu interesse parece recair para o sonho nostálgico de voar no que resta dos descartes da aviação. Aviões que voaram e que não voam mais de tão velhos.
Jannis Kounellis, Giovanni Alselmo, Michelangelo Pistoleto, Robert Rauschenberg, John Chamberlain e o artista brasileiro Rubens Espírito Santo, que mantém o Ateliê do Centro, em São Paulo, lugar onde Amaro estudou Filosofia e encontrou o caminho para a escultura de apropriação de materiais, cuja característica é o desejo de “ordenação” do caos do mundo. Esses são alguns dos nomes da família de artistas que são referência para se olhar sua obra.
Esses artistas nascidos da arte povera (do italiano, literalmente, “arte pobre”, é um movimento artístico que combina materiais pobres para fazer arte)[1], são as suas referências artísticas mais próximas e que nos dão o caminho para compreensão de sua produção escultórica.
Egressos dos anos 1960 e 1970, ainda ecoam na produção atual. Outro a ser lembrado pela proximidade no tempo com o trabalho de Marcos Amaro, é o norte-americano Tom Sachs. Incluiria ainda neste leque de artistas, Arthur Bispo do Rosário, pioneiro da arte povera sem sabê-lo. Só descoberto no começo dos anos 1980, no Rio de Janeiro, surpreendeu o mundo da arte com sua obra descoberta.
O artista sergipano ao longo de sua vida, depois de ouvir vozes que o mandavam organizar e criar os seus objetos, dizia saber que não se tratava de arte o que fazia, para reordenar as coisas do mundo, museificando-as para a eternidade. Disse ter sido obrigado a fazer por estas vozes. Fazia por obrigação para o encontro no Juízo final com Deus. Uma obra impressionante feita em parte do acúmulo de pequenos objetos de uso no cotidiano recobertos com linha azul.
O que faz também Marcos Amaro. Depois de destroçar, reordena as “ossadas” dos aviões. Junta a esses pedaços de avião outros materiais “sujos”, envelhecidos e descartados como feltro, madeira, ferro, plástico, pneu, cano, corda, skate, lâmpada fluorescente, água, colchão, aparelho de televisão, intercalados com suas amarrações e soldas. Em alguns trabalhos encaixa outro elemento a compor suas esculturas, a luz das lâmpadas néon e dos vídeos (imagens de televisão), transformando em um amontoado de coisas organizadas, sem deixar de evidenciar o equilíbrio precário das peças, esculturas e instalações, diria ainda, em seu estado bruto.
Marcos Amaro desbrava o campo da escultura contemporânea onde não se define muito bem os seus limites, do que entendemos por escultura e por instalação. Não dá também para falar de estilo. Para a arte contemporânea, a palavra está em desuso e, mais ainda, não caberia para comentar as esculturas “instalacionais” de Amaro. Não há normas tradicionais a reger sua criação, não há exigência de materiais nobres, não há a exigência das mãos do artista a moldar a matéria, não há a rigidez de pureza na forma e no material escultórico. O que vemos, em uma primeira vista, é o acúmulo de coisas aleatórias que formam uma massa que assume certo “geometrismo sem forma”, quero dizer, disforme.
Descobre-se nas suas instalações a predominância de materiais de procedência aeronáutica. Em um segundo olhar, percebe-se a arrumação que faz e descobre-se que não é aleatória, há uma ordenação que resulta nessas formas geométricas meio moles. O artista, a bem da verdade, divaga sobre a diversidade de materiais e formas que acumula, oriundos das carcaças de aviões velhos e sua maquinaria.
Surgem nas esculturas partes como pneus, trens de pouso, peças de turbina e as asas. Nada é perdido quando desmonta essas aeronaves. Aproveita desde os cintos até os pneus.
Adquire as aeronaves em leilões no Brasil e no exterior. É antes de tudo uma paixão por aviões às avessas, como já dito.
Desmonte, acúmulo e colagem é o processo de criação. Um inventor que tem gosto de reinventar as coisas.
O ateliê que lembra uma oficina mecânica ou um hangar, também tem ares de laboratório, onde experimenta com os materiais que caem nas suas mãos ou nas suas vistas. As mãos são usadas para levar, orientar e levantar através de carros hidráulicos as peças pesadas e volumosas.
Os trabalhos são partes combinadas que constroem formas inusitadas que de tão reais ainda exalam cheiros, mesmo que já não existam mais nos restos do avião. Sente-se no ar o odor da querosene, do óleo queimado das turbinas, da poeira acumulada nos feltros e lonas que faz uso para criar suas ‘pinturas’ matéricas. Matérias acumuladas e combinadas formando uma ‘superfície’ que vai pendurada na parede. Na exposição Sobrevoo há uma série delas. São camadas (campos) de cores e texturas o que cria, carregadas ainda daquela sujidade. A poeira acumulada e o enegrecimento provocados pela passagem do tempo.
Nas ‘pinturas’ que saem do plano, sobressaem os campos de cor dos próprios materiais. Lataria da carcaça dos aviões, galões, parte das asas com suas pinturas gráficas e tecidos (Dispositivos Insólitos, 2016).
Já as esculturas podem ficar penduradas, suspensas, apoiadas por cabos nas paredes ou simplesmente organizadas e pousadas sobre o chão.
Escombros? A maneira como são juntadas, aparentemente ao acaso, faz parte da alusão do precário.
As esculturas mais se parecem com o caos de um desastre aéreo quando observadas no seu entorno. Uma parte aqui outra ali, tudo em destroços enegrecidos pelo fogo do combustível queimado.
Mas aí, Marcos Amaro, em algumas dessas esculturas pesadas, entra com luz. Luzes que lavam com a cor sedosa emitida pelas lâmpadas néon sobre as ferragens, borrachas e pneus. Torna-se um dado sensível sobre aquelas carcaças. Lhes dá contorno suave como as naves de uma odisseia espacial (O Jedi, 2013) ao espalhar a cor brilhante pelas paredes e pelo chão.
Na poética de Sobrevoo, percebe-se que o artista procura o seu caminho e coerência interna no que faz ao observar o conjunto da exposição. Trabalha com a memória da aviação.
A sua poética está na ilusão humana de desejar voar sem ter asas. Conseguimos realizar este sonho através do avião. Precisamos dessa máquina já que ainda não conseguimos voar com as nossas próprias braçadas.
No curta-metragem Paixão Nacional , de Karin Ainüz, de 1994, ouve-se a narrativa de um rapaz que sonhava voar para ultrapassar o oceano à sua frente, que separava a cidade de Fortaleza da Europa. O mar era o mito do intransponível, do horizonte sem fim. Sua avó contava quando ele era criança, que do outro lado daquele oceano de água existia um outro pedaço de terra. Sonhou voar como os pássaros. Mas na sua realidade, a única maneira seria viajar clandestinamente em um avião cargueiro com destino à Europa.
Conseguiu, mas o sonho lhe saiu caro.
Do porão dessa aeronave, no vídeo, o escutamos narrar em primeira pessoa enquanto sobrevoava as praias do Ceará. Depois entra no mar logo à frente, de onde se avista para trás suas ondas que arrebentavam na areia. O jovem conta sua história em primeira pessoa, fala dos seus sonhos enquanto viaja rumo a um destino desconhecido. Aos poucos, sem se perceber, veio um frio que lentamente aumentava e foi tomando o seu corpo até congelar. Sua voz foi diminuindo até que emudeceu para sempre, quando morreu inconscientemente.
As imagens continuam a passar. O avião chega no seu destino em algum aeroporto europeu. Morto, foi assim que chegou na Europa. Cumpriu o seu sonho de Ícaro. De ter asas e voar mesmo que esse desejo pudesse leva-lo à morte. Silêncio.
Não muito diferente é o mito de Ícaro, outro jovem audaz da mitologia grega. Empolgado com sua façanha de ter alçado voo tão alto, viu-se metido em uma mesma tragédia que o cearense. Dessa audácia de querer alcançar voo sobre a Grécia, se aproximou do sol apesar dos avisos do pai, Dédalos, de que, as asas inventadas por ele eram feitas de penas e de cera, com o calor do sol poderiam derreter.
“Não voe tão alto”, pediu o pai.
No entanto, quanto mais voava mais se animava a desafiar o sol, mais alto ia. Mais próximo do sol ficava, as asas, como havia previsto o pai, não resistiram ao calor dos raios solares, quanto mais próximo chegava.
Ícaro caiu no mar despencando do céu, mergulhando em meio à escuridão sem fim.
Marcos Amaro tem um pouco de Dédalos, inventor, pai de Ícaro na mitologia grega; tem um pouco de Ícaro, audacioso, e tem um pouco do jovem cearense, sonhador. Um dia todos desejaram voar. Ícaro fugia com o pai da perseguição de Minos. O pai de Ícaro recolheu suas partes no mar para enterrá-lo. Amaro recolhe as partes de aviões velhos, como corpos de ‘deuses’ em desuso.
É paixão expressa pelas aeronaves ainda que trabalhe com a carcaça, é paixão e morte, ao mesmo tempo. Mas o que faz, estranhamente, é dar sobrevida com afeto a estas máquinas agora inúteis, que foram voadoras algum dia.
Esvazia tudo ao desfazer os aviões que caem nas suas mãos. No entanto, vai até o fim das coisas, sem deixar que os “objetos” sucateados morram, melhor, se desfaçam por completo. Reutiliza-os. Dá novo sentido quando os transforma em objetos de arte, mesmo que para pura contemplação, voltam carregados de memória.
Acumula com paixão aeronaves inteiras ou suas partes para transformá-las em trabalhos. Junta, desfaz, rejunta para chegar nas suas esculturas e instalações monumentais, lhes devolvendo assim, os dias gloriosos agora como matéria pousada no chão, suspensas ou na parede do espaço expositivo, agora como arte.
Ricardo Resende
Curador
Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
Rio de Janeiro
Voar voar, subir subir ir por onde for
Descer até o céu cair ou mudar de cor
Anjos de gás, asas de ilusão
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Guilherme Arantes[2]
[1] Termo criado pelo critico italiano Germano Celant em 1967, para definir a criação de um grupo de artistas que buscavam pela via dos materiais utilizados em suas obras, ‘empobrecer’ a arte, tirar o seu requinte e valoração.
[2] Guilherme Arantes, letra da canção Sonho de Ícaro