Na tarde dourada, já as colinas, sob o avião, iam cavando o seu rasto de sombra. Os campos tornavam-se luminosos, de uma luminosidade perene: naquelas regiões, os campos não cessam de espalhar seu ouro, assim como no inverno não findam a sua apoteose de neve.
Antoine de Saint-Exupéry, Voo Noturno, 1931
Picasso costumava dizer que quando tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisou da vida inteira para aprender a desenhar como uma criança. E aprendemos com essa lição que o que move o artista é a necessidade de se expressar o mais diretamente possível,
sem amarras ou regras que possam obstaculizar o primeiro impulso, o mais puro, ou aquele que vem direto do coração e da imaginação.
É o que Marcos Amaro mostra com seus inúmeros desenhos de modelos de aeronaves e submarinos antigos – executados mais pelo encantamento duradouro do menino que aprendeu a amar aviões com seu pai do que a partir da destreza de um artista acadêmico ou da perícia de um engenheiro náutico.
A sua imagem é direta, franca, compendiária, às vezes quase danificando o papel, pois revela aquela pressa de não perder o encontro, de reter o momento, de suspender o tempo da primeira visão. Alude assim ao problema de toda representação: fazer-nos perceber que estamos diante de algo que não é, mas que apenas parece ser.
A vontade do artista é de superar este gap, apresentando o visível ao invés de representá-lo (vide Paul Klee), pouco importando as regras da arte, as exigências do material ou a disciplina segundo o métier. Este deve ser desprezado em prol da expressão daquele gesto primevo. Para Marcos Amaro isso era uma verdade, ou era a verdade quanto ao seu procedimento de fabricação artística, até o seu encontro com a gravura, do qual esta suíte, U-Boot, é o primeiro resultado, arrisco a dizer, de muitos que ainda virão.
A gravura (em metal, calcografia; em madeira, xilogravura) oferece um conjunto limitado de técnicas que permitem desenhar ou transferir uma imagem para a matriz, da qual se imprimirá a imagem, e isso demanda necessariamente o cumprimento de uma série de etapas. Na gravura, não é exatamente o que você desenhou, de supetão, que você verá impresso.
Há um freio, uma resistência ao acontecimento desta primeira visão, imposto pela própria técnica e seus materiais.
E também há um tempo que é diverso daquele do desenho e da pintura. É justamente nesse tempo que o artista deve mergulhar, admitindo-o como sendo mais poderoso do que o nosso cérebro, como dizia Maquiavel.
O primeiro impulso é posto em fuga numa matriz semiperpétua, inscrita em relevos, sem possibilidade de apagamentos sumarizados. A tridimensionalidade da matriz é transferida para a impressão ao moldar o papel de acordo com a quantidade adequada de tinta e pressão.
O artista começa a entender que algo não plenamente visível opera a seu favor, ou às vezes contra, durante a consecução da imagem. E que é preciso responder às exigências do processo, domá-lo, torná-lo teu, se quiser preservar a visão primeira, a sua concepção original.
Quando isso ocorre, a gravura é capaz de devolver ao artista uma imagem esculpida pelo tempo, com o sabor daquele primeiro desenho que se originou na imaginação ou no seu coração. A imagem primeira é elevada ao cubo, possui a materialidade do objeto e da escultura: é por assim dizer, uma microinstalação.
Marcos Amaro demonstra, nesta bela suíte de gravuras, que começou a entender esse processo, fazendo-o trabalhar a favor de sua poética. Os aviõezinhos, o foguete e o único submarino que dá título ao álbum, o U-Boot, são construídos em ponta-secas, sobretudo, ou em xilogravuras que trazem à memória a gráfica de Gauguin, Munch ou de nosso Goeldi, entre outros.
Em todos esses exemplos, assim como nos modelos gravados por Marcos Amaro, há uma rudeza ou inacabamento desejados, uma forma de fazer convergir a memória, como metáfora do esquecimento, com as características dos próprios materiais que servem de suporte para a gravação, rudimentares.
Mas seu “voo noturno” não é lúgubre ou denotativo do poder letal dessas máquinas de guerra de outrora. As suas naves são gravadas sob o sol de Itu, a cidade que escolheu para ser a sede de seu ateliê e de sua Fábrica de Arte: nos trazem, além da inspiração e do encantamento daquele menino que brincava com aviões e barquinhos, o sentimento de perda inelutável de um mundo marcado por grandes adventos industriais, que não existe mais para nós, senão como ruína, sucata ou lembranças do primeiro lar.
Luiz Armando Bagolin
Julho de 2019