O Poço: para a tomada de consciência de si mesmo

A exposição “O Poço”, do artista Marcos Amaro, é o segundo ato do projeto “Ontologias”, um estudo experimental expandido, cujo conceito parte principalmente da interpretação filosófica da natureza do ser, da existência e da realidade. Para a sociedade ocidental, desde a 2a Guerra Mundial que as questões existenciais não ficavam tão evidentes quanto neste contexto pandêmico em que vivemos. Naquela época, os horrores da guerra serviram de pano de fundo para elevar as discussões sobre o “Eu” ao nível filosófico, colocando a existência humana como um produto do contexto na qual está inserida e como consequência dos seus próprios atos. Os desdobramentos desses conceitos perduram até hoje e dão fôlego para novas abordagens. “Ontologias”, dessa forma, surgiu num dos momentos mais críticos da história da humanidade, em pleno isolamento social imposto pela pandemia Covid-19, através da necessidade do artista em trabalhar a condição humana, a partir de si próprio.

A grosso modo, Ontologia na filosofia é a ciência do ser enquanto ser. Para o polêmico Martin Heidegger, ‘Ontologia’ trata da existência em determinado contexto, ou seja, a possibilidade de ser, que varia faticamente de acordo com situação. Paradoxalmente, para ele, o homem quando questiona a si mesmo, o faz como uma forma de se esconder das angustias. A mostra “O Poço” é esse espelho. Coloca o espectador diante de si mesmo, da mesma forma que fez o artista ao confrontar-se consigo num período atípico de recolhimento.

“O Poço” (2020) também é título para a obra central da exposição, composta por um corpo robusto de pedras e um espelho ao fundo. Ao nos aproximar deparamos com a nossa própria figura espelhada, porém cercada. Trata-se de uma obra que faz uma alusão direta ao conceito de “Ontologias”, propondo uma imersão introspetiva, profunda, meio narcisística, meio heidegariana. Nosso eu, preso em nós mesmos e na nossa condição de ser humano. Sem saída. Irremediável.

A mostra conta também com um conjunto de desenhos, do qual podemos dividir em quatro séries. Expostos na parede curvilínea do mezanino do museu, abraçam e complementam “O Poço”, ao mesmo tempo em que torna nítida a maneira fugaz e catártica com que foram realizados, como num sopro de liberdade. A simplicidade formal (carvão sobre tela) contrapõe a complexidade das figuras quase abstratas, que tratam da existência, da nossa mais intensa e visceral maneira de existir, pensar e agir. Para Heidegger “aquilo que torna possível as múltiplas existências”.

Os desenhos da série “Sem título” (2020) traduzem uma narrativa de tensão e embate. Seus pseudo-personagens são mais reais do que parecem. Nas suas disformidades, empunham objetos e promovem atos arrebatados, vulgares, comuns. Em uma outra série “O Corvo” (2020), o artista divide uma figura maior de um rosto em cinco partes. Neste quebra-cabeça, os vultos dos corvos pousam nas mais diversas poses e espaços das telas, o que antes eram partes de uma face. Contraditório e inteligente, o corvo consegue se utilizar de ferramentas para se defender e se alimentar. Figura de resistência. Por outro lado, é carregada de significados: alguns consideram esse pássaro necrófago como símbolo de mau agouro, já outros como sinal de astúcia e até fertilidade.

O espanhol Francisco de Goya e o inglês Francis Bacon serviram de inspiração, respectivamente, nas séries “Homenagem a Goya” (2020) e “Homenagem a Bacon” (2020). Aqui, Marcos Amaro se utiliza de elementos desconstruídos e traços característicos das obras desses dois pintores para compor um conjunto de formas monocromáticas, como se fosse o primeiro esboço de trabalhos icônicos de ambos. Um deles, nitidamente faz uma alusão direta a “Saturno devorando um filho” (1819), de Goya. Não à toa, Marcos Amaro resgata uma representação de Goya, um artista conhecedor do Iluminismo e da ferocidade do ser humano, que sabia muito bem como desconstruir o ideal do “Eu” e da figura racional do homem como centro do universo. Em ato dramático, o personagem da mitologia romana, criador e dono do tempo, come os próprios filhos numa tentativa de contestar os efeitos do tempo e se manter no poder. Assim como a figura de Goya, a de Amaro também é desumanizada, porém meio burlesca, numa alegoria do desvario do contexto em que ambos estiveram inseridos.

A homenagem a Francis Bacon veio por inspiração de “Três estudos para figuras na base de uma crucifixão” (1944), o tríptico que marcou para sempre a carreira de Bacon e a história da arte britânica. É impossível não nos atentarmos para o ano de 1944, quando chegava ao fim a 2a Guerra Mundial e com ela veio a revelação do genocídio cometido pelos nazistas. A brutalidade desse período (e quiçá dessas pinturas, tanto que o artista as chamavam de “Furias”) marcou de tal forma o pintor que ele desconsiderou toda a sua produção que se antecedeu a essa. Marcos Amaro, nessa série de desenhos, revisita o trabalho desse artista, não apenas subtraindo as cores fortes, originalmente laranja, mas também excluindo o único elemento que trazia certa humanidade às figuras de Bacon: as bocas.

O projeto “Ontologias”, do qual faz parte a exposição “O Poço” marca uma nova fase na carreira de Marcos Amaro. Afeito a tridimensionalidade de obras robustas e de grande dimensão, Amaro deixa de lado as esculturas a partir das peças de avião para trabalhar de forma mais introspectiva, por meio de esculturas, pinturas e desenhos em menor escala. Assim como Heidegger, Bacon e Goya, que se deixaram influenciar fortemente por contextos históricos adversos e contundentes das guerras para falar do ser humano, Marcos Amaro fechou-se em sua residência por conta de uma quarentena em meio a um outro tipo de luta, abrindo-se para uma pesquisa infinita sobre si mesmo e sobre a guerra tão perturbadora quanto, aquela particular da existência do outro.

Por Tatiana Gonçales

 


Fontes
HEIDEGGER, Martin. Ontologia. Hermenêutica da facticidade. Trad. Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2013.